27 de set. de 2010
25 de set. de 2010
23 de set. de 2010
22 de set. de 2010
21 de set. de 2010
20 de set. de 2010
Letras da vida
por Bruno Moreschi
publicado revista Vida Simples (08/10)
Numa roda de amigos, a conversa é sobre literatura. Cada um revela ao outro o que está lendo. Num misto de esnobismo e insegurança, alguém diz que está “relendo” determinado livrão clássico. Mentira. Receoso de colocar em questão sua reputação intelectual, a pessoa dificilmente assumiria que lê pela primeira vez alguma obra conhecida, como um Hamlet, do inglês William Shakespeare, ou um Crime e Castigo, do russo Fiódor Dostoiévski.
O escritor italiano Italo Calvino começou sua obra Por Que Ler os Clássicos, um pertinente ensaio sobre a importância da leitura desses livros, tratando justamente dessa atitude que recende a hipocrisia. De acordo com Calvino, não há idade para começar a ler um livro considerado famoso e respeitado pela crítica. E complementa com um recado consolador aos que temem assumir em público sua incipiente capacidade literária: “Por maiores que possam ser as leituras de formação de um indivíduo, resta sempre um número enorme de obras que ele não leu.”
A frase de Calvino destoa dos inúmeros preconceitos que cercam a literatura considerada clássica pela crítica especializada – ou canônica, numa classificação mais acadêmica. Graças aos inúmeros estudos sobre essas obras, elas podem passar a falsa impressão de serem leituras destinadas apenas a seletos (e eruditos) especialistas.
Isso não é uma verdade. Livros, sejam eles respeitados ou não, foram feitos por seus autores para serem lidos. Na verdade, quem teme ou apenas usa os livros clássicos como grife intelectual tenta se proteger. Ao evitar suas páginas, ficam livres de uma experiência que quase sempre questiona nossas certezas e sugere um mundo mais complexo. Trata-se de uma proteção revestida do mais ignorante dos medos. Aquele alimentado por ideias ditas pelos outros, não por uma experiência individual de leitura.
Diversão e arte
É preciso relativizar o senso comum que diz que clássicos são sinônimos de leituras maçantes. Não há nada de errado em estranhar sua linguagem nas primeiras páginas. Por serem quase sempre livros antigos, eles são mesmo escritos de uma maneira um pouco diferente da que escrevemos hoje. Nada que alguns minutos de insistência não resolvam.
Ser compreendido e popular era intenção de William Shakespeare, o escritor que revolucionou a maneira como contamos uma história. A prova disso é que o autor inventou mais de 1500 novas palavras para conferir mais clareza aos seus textos. Muitas delas continuam válidas até hoje, como é o caso de gossip (fofoca em inglês). Peças como Romeu e Julieta, Rei Lear e Sonhos de uma Noite de Verão lotavam o teatro londrino The Globe, construído a pedido de Elizabeth I, e apresentações quase diárias aconteciam também na corte de James VI.
Shakespeare não é exceção. Outros autores também se inspiravam em fontes pop de sua época. Publicado em 1605 e escrito pelo espanhol Miguel de Cervantes, Dom Quixote de La Mancha é inspirado nas histórias de heroísmo dos séculos 14 e 15 – todas muito populares em sua época. Autor de A Mulher de Trinta Anos, o escritor francês Honoré de Balzac chegava a construir maquetes dos ambientes em que suas histórias se passavam para poder descrevê-las de maneira clara e realista.
Para não ficarmos somente em autores internacionais, o mineiro Guimarães Rosa levou setes meses para escrever os contos de Sagarana. Quando pronto, guardou a obra por sete anos para, só depois disso, começar uma reescrita completa do material. O esforço era para criar uma linguagem fluida e ritmada, vista por exemplo na descrição de um burro no primeiro conto: “... no algodão bruto do pelo – sementinhas escuras em rama rala e encardida; nos olhos remelentos, cor de bismuto, com pálpebras rosadas, quase sempre oclusas, em constante semissono; e na linha, fatigada e respeitável – uma horizontal perfeita, do começo da testa à raiz da cauda em pêndulo amplo, para cá, para lá, tangendo as moscas”. E há ainda quem afirme que as obras de Rosa são leituras complicadas.
Mesmo assim, é preciso assumir que certos clássicos exigem certa disposição. Alguns são imensos, podem demandar meses a fio para serem lidos. Outros, custosos aos leitores, por causa de uma linguagem mais hermética. Restam duas opções ao leitor em potencial. Uma delas é ignorar essas obras com o frágil argumento de que são mesmo grandes e difíceis. Mais interessante, porém, é tentar entender a razão de o autor ter contado uma história dessa maneira tão custosa a quem a lê. Pode apostar: quase sempre há uma razão bastante justificável para isso.
Escrito pelo francês Marcel Proust no início do século 20, Em Busca do Tempo Perdido é considerado um dos romances mais decisivos, influentes e poderosos da literatura ocidental. Mesmo com tamanho prestígio entre o seleto grupo dos clássicos, o calhamaço de cerca de 3 mil páginas divididas em sete livros assusta a maioria das pessoas. Não deveria. Ao criar 25 personagens principais, Proust almejava um objetivo suntuoso: escrever sobre a relação do homem com sua memória. Seria impossível conseguir destrinchar um tema tão complexo em apenas algumas centenas de páginas. Além disso, diferentemente do que muita gente pensa, Em Busca do Tempo Perdido não é uma obra difícil de ler.
Sem medo
O engenheiro civil Arnaldo Mendes costuma ler em média um livro por semana há pelo menos uma década. “Não é uma obrigação. Faço porque gosto”, diz. No ano passado, decidiu não mais postergar o desejo de ler a obra-prima de Proust. Após seis meses, Mendes avalia: “Poderia ter encurtado esse tempo para a metade. Mas era delicioso parar em alguns momentos e ficar apenas pensando no que tinha acabado de ler.”
Quando terminou de ler a mesma obra, o irlandês Samuel Beckett, autor de Esperando Godot, disse algo semelhante. Ele assumiu que de fato se tratava de uma tarefa cansativa, mas não por causa das milhares de páginas: “A fadiga que se sente é a fadiga do coração, uma fadiga de sangue”. Beckett repetiu o que a maioria dos leitores relatam quando terminam esse livro. Em Busca do Tempo Perdido exige mesmo disciplina e empenho, mas vale a pena pela experiência intelectual que a obra proporciona.
Certa vez, numa entrevista, o escritor norte-americano e ganhador do prêmio Nobel de literatura William Faulkner foi questionado do motivo de seu livro O Som e a Fúria ser tão difícil de ser lido. Ele não aceitou a observação da jornalista de que é necessário ler no mínimo duas vezes para compreender a história. Faulkner corrigiu-a: “Sugiro que leia quatro vezes”.
Nesse caso também há uma razão. Faulkner quis construir um livro em que o fluxo de pensamento dos próprios personagens conduzisse a trama. Cada capítulo de O Som e a Fúria é contado sob o ponto de vista de uma pessoa diferente.
Quem começa a história é Benjamin Compson, um rapaz com deficiência mental. Por isso, os trechos misvida turam sensações: “Peguei no portão mas não senti nada, mas sentia o cheiro forte do frio”. Ao optar por extensas frases com pouca pontuação e pensamentos emaranhados, Faulkner sabia exatamente o que queria. Não à toa, muitos críticos literários o consideram o escritor que revolucionou o texto em primeira pessoa. “Essa história precisava ser contada dessa exata e confusa maneira”, disse Faulkner.
Mas casos como esses não significam que as pessoas são incapazes de ler os clássicos. Em diferentes locais e durante quatro anos, o escritor e doutor em Literatura Brasileira pela USP Ricardo Lísias, autor de O Livro dos Mandarins, comandou um curso sobre os clássicos da literatura. As Flores do Mal, de Charles Baudelaire, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e Rumo ao Farol, de Virgínia Woolf, foram alguns dos livros que os participantes precisavam ler para, depois, discutir em grupo.
Lísias não teve grandes problemas com as turmas. Ele conta: “É um engano acharmos que as pessoas não entendem os clássicos. Durante as aulas, elas possuíam varias opiniões sobre as obras, mas quase sempre eram visões bastante pertinentes”.
Rumo ao futuro
Livros clássicos não são sinônimos de obras perfeitas. Eles são chamados dessa maneira algo pomposa apenas por serem obras que passaram por um longo processo de legitimação – produzido em grande parte pela academia e passível de questionamentos a qualquer momento.
Em O Cânone Ocidental, o crítico norte-americano Harold Bloom analisa essa dinâmica existente entre os clássicos. A seu ver, obras literárias travam uma peleja freudiana em que se infuenciam pelo passado, mas também tentam constantemente romper com seus antepassados. Platão lutava para que seus escritos fossem mais relevantes que os de Homero. Crime e Castigo, de Dostoiévski, e a teoria psicanalítica de Sigmund Freud jamais seriam criados sem Shakespeare. Na ânsia de desafiar a maneira como esse mesmo autor inglês conta uma história, Beckett, Proust, Kafka e Joyce escreveram seus livros. Joyce, aliás, foi além: para escrever Ulisses, apropriou-se da narrativa da Odisseia, de Homero.
Bloom: “A tradição não é apenas um passar adiante ou um processo de transmissão benigna; (...) Poemas, contos, romances e peças nascem como uma resposta a poemas, contos, romances e peças anteriores”.
Entender esse jogo torna a leitura de clássicos algo menos fetichista. Muito mais que obras escritas por iluminados, eles são frutos da tentativa consciente ou inconsciente de escritores que almejavam adentrar na história da literatura. E só por esse esforço suas obras já merecem uma leitura.
Sempre atuais
Em 2002, o filho mais novo da aposentada Elem Seravali seguiu o caminho do mais velho e foi estudar fora. A casa em Maringá (PR) pareceu maior do que já era. Por sugestão dos filhos, ela resolveu começar a ler alguns livros da estante da sala de estar – antes, eles estavam ali mais como decoração. Desde então, Elem leu muito, e O Morro dos Ventos Uivantes, da britânica Emily Brontë, é seu livro favorito.
Suas opiniões acerca dos clássicos estão em sintonia com as ideias de dois especialistas respeitados. Elem diz: “Antes de lê-los, achava que livros antigos não serviam para os dilemas atuais. Era um engano meu.” Em O Prazer de Ler os Clássicos, o escritor Michael Dirda complementa: “As vozes verdadeiramente marcantes, uma vez ouvidas, jamais deveriam ser esquecidas”.
Elem também acha interessante ler obras mais antigas justamente pelo motivo que espanta tantas outras pessoas: sua escrita diferente, não tão usual como a vista em livros mais novos. “Essa estranheza me permite imaginar muito mais coisas”, diz. O escritor italiano Umberto Eco compara essa possibilidade de imaginar que a escrita nos oferece como um passeio por um bosque em que caminhos se bifurcam. “Todos podem traçar seu próprio caminho. Num texto narrativo, o leitor é obrigado a optar o tempo todo”, escreve o teórico e ficcionista em Seis Passeios pelos Bosques da Ficção.
Antes de largar a vida de escritor aos 22 anos e viajar até o dia de sua morte, o poeta francês Arthur Rimbaud disse algo emblemático: “O poe ta se faz vidente por um grande, imenso e racional desregramento de todos os sentidos”. Esse esforço intelectual foi experimentado também por grande parte dos escritores canônicos. Ao caminharem por bosques desconhecidos, esses autores escreveram relatos sobre a experiência. Se deixarmos de lado receios infundados, eles podem ser lidos por qualquer um de nós.
publicado revista Vida Simples (08/10)
Numa roda de amigos, a conversa é sobre literatura. Cada um revela ao outro o que está lendo. Num misto de esnobismo e insegurança, alguém diz que está “relendo” determinado livrão clássico. Mentira. Receoso de colocar em questão sua reputação intelectual, a pessoa dificilmente assumiria que lê pela primeira vez alguma obra conhecida, como um Hamlet, do inglês William Shakespeare, ou um Crime e Castigo, do russo Fiódor Dostoiévski.
O escritor italiano Italo Calvino começou sua obra Por Que Ler os Clássicos, um pertinente ensaio sobre a importância da leitura desses livros, tratando justamente dessa atitude que recende a hipocrisia. De acordo com Calvino, não há idade para começar a ler um livro considerado famoso e respeitado pela crítica. E complementa com um recado consolador aos que temem assumir em público sua incipiente capacidade literária: “Por maiores que possam ser as leituras de formação de um indivíduo, resta sempre um número enorme de obras que ele não leu.”
A frase de Calvino destoa dos inúmeros preconceitos que cercam a literatura considerada clássica pela crítica especializada – ou canônica, numa classificação mais acadêmica. Graças aos inúmeros estudos sobre essas obras, elas podem passar a falsa impressão de serem leituras destinadas apenas a seletos (e eruditos) especialistas.
Isso não é uma verdade. Livros, sejam eles respeitados ou não, foram feitos por seus autores para serem lidos. Na verdade, quem teme ou apenas usa os livros clássicos como grife intelectual tenta se proteger. Ao evitar suas páginas, ficam livres de uma experiência que quase sempre questiona nossas certezas e sugere um mundo mais complexo. Trata-se de uma proteção revestida do mais ignorante dos medos. Aquele alimentado por ideias ditas pelos outros, não por uma experiência individual de leitura.
Diversão e arte
É preciso relativizar o senso comum que diz que clássicos são sinônimos de leituras maçantes. Não há nada de errado em estranhar sua linguagem nas primeiras páginas. Por serem quase sempre livros antigos, eles são mesmo escritos de uma maneira um pouco diferente da que escrevemos hoje. Nada que alguns minutos de insistência não resolvam.
Ser compreendido e popular era intenção de William Shakespeare, o escritor que revolucionou a maneira como contamos uma história. A prova disso é que o autor inventou mais de 1500 novas palavras para conferir mais clareza aos seus textos. Muitas delas continuam válidas até hoje, como é o caso de gossip (fofoca em inglês). Peças como Romeu e Julieta, Rei Lear e Sonhos de uma Noite de Verão lotavam o teatro londrino The Globe, construído a pedido de Elizabeth I, e apresentações quase diárias aconteciam também na corte de James VI.
Shakespeare não é exceção. Outros autores também se inspiravam em fontes pop de sua época. Publicado em 1605 e escrito pelo espanhol Miguel de Cervantes, Dom Quixote de La Mancha é inspirado nas histórias de heroísmo dos séculos 14 e 15 – todas muito populares em sua época. Autor de A Mulher de Trinta Anos, o escritor francês Honoré de Balzac chegava a construir maquetes dos ambientes em que suas histórias se passavam para poder descrevê-las de maneira clara e realista.
Para não ficarmos somente em autores internacionais, o mineiro Guimarães Rosa levou setes meses para escrever os contos de Sagarana. Quando pronto, guardou a obra por sete anos para, só depois disso, começar uma reescrita completa do material. O esforço era para criar uma linguagem fluida e ritmada, vista por exemplo na descrição de um burro no primeiro conto: “... no algodão bruto do pelo – sementinhas escuras em rama rala e encardida; nos olhos remelentos, cor de bismuto, com pálpebras rosadas, quase sempre oclusas, em constante semissono; e na linha, fatigada e respeitável – uma horizontal perfeita, do começo da testa à raiz da cauda em pêndulo amplo, para cá, para lá, tangendo as moscas”. E há ainda quem afirme que as obras de Rosa são leituras complicadas.
Mesmo assim, é preciso assumir que certos clássicos exigem certa disposição. Alguns são imensos, podem demandar meses a fio para serem lidos. Outros, custosos aos leitores, por causa de uma linguagem mais hermética. Restam duas opções ao leitor em potencial. Uma delas é ignorar essas obras com o frágil argumento de que são mesmo grandes e difíceis. Mais interessante, porém, é tentar entender a razão de o autor ter contado uma história dessa maneira tão custosa a quem a lê. Pode apostar: quase sempre há uma razão bastante justificável para isso.
Escrito pelo francês Marcel Proust no início do século 20, Em Busca do Tempo Perdido é considerado um dos romances mais decisivos, influentes e poderosos da literatura ocidental. Mesmo com tamanho prestígio entre o seleto grupo dos clássicos, o calhamaço de cerca de 3 mil páginas divididas em sete livros assusta a maioria das pessoas. Não deveria. Ao criar 25 personagens principais, Proust almejava um objetivo suntuoso: escrever sobre a relação do homem com sua memória. Seria impossível conseguir destrinchar um tema tão complexo em apenas algumas centenas de páginas. Além disso, diferentemente do que muita gente pensa, Em Busca do Tempo Perdido não é uma obra difícil de ler.
Sem medo
O engenheiro civil Arnaldo Mendes costuma ler em média um livro por semana há pelo menos uma década. “Não é uma obrigação. Faço porque gosto”, diz. No ano passado, decidiu não mais postergar o desejo de ler a obra-prima de Proust. Após seis meses, Mendes avalia: “Poderia ter encurtado esse tempo para a metade. Mas era delicioso parar em alguns momentos e ficar apenas pensando no que tinha acabado de ler.”
Quando terminou de ler a mesma obra, o irlandês Samuel Beckett, autor de Esperando Godot, disse algo semelhante. Ele assumiu que de fato se tratava de uma tarefa cansativa, mas não por causa das milhares de páginas: “A fadiga que se sente é a fadiga do coração, uma fadiga de sangue”. Beckett repetiu o que a maioria dos leitores relatam quando terminam esse livro. Em Busca do Tempo Perdido exige mesmo disciplina e empenho, mas vale a pena pela experiência intelectual que a obra proporciona.
Certa vez, numa entrevista, o escritor norte-americano e ganhador do prêmio Nobel de literatura William Faulkner foi questionado do motivo de seu livro O Som e a Fúria ser tão difícil de ser lido. Ele não aceitou a observação da jornalista de que é necessário ler no mínimo duas vezes para compreender a história. Faulkner corrigiu-a: “Sugiro que leia quatro vezes”.
Nesse caso também há uma razão. Faulkner quis construir um livro em que o fluxo de pensamento dos próprios personagens conduzisse a trama. Cada capítulo de O Som e a Fúria é contado sob o ponto de vista de uma pessoa diferente.
Quem começa a história é Benjamin Compson, um rapaz com deficiência mental. Por isso, os trechos misvida turam sensações: “Peguei no portão mas não senti nada, mas sentia o cheiro forte do frio”. Ao optar por extensas frases com pouca pontuação e pensamentos emaranhados, Faulkner sabia exatamente o que queria. Não à toa, muitos críticos literários o consideram o escritor que revolucionou o texto em primeira pessoa. “Essa história precisava ser contada dessa exata e confusa maneira”, disse Faulkner.
Mas casos como esses não significam que as pessoas são incapazes de ler os clássicos. Em diferentes locais e durante quatro anos, o escritor e doutor em Literatura Brasileira pela USP Ricardo Lísias, autor de O Livro dos Mandarins, comandou um curso sobre os clássicos da literatura. As Flores do Mal, de Charles Baudelaire, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e Rumo ao Farol, de Virgínia Woolf, foram alguns dos livros que os participantes precisavam ler para, depois, discutir em grupo.
Lísias não teve grandes problemas com as turmas. Ele conta: “É um engano acharmos que as pessoas não entendem os clássicos. Durante as aulas, elas possuíam varias opiniões sobre as obras, mas quase sempre eram visões bastante pertinentes”.
Rumo ao futuro
Livros clássicos não são sinônimos de obras perfeitas. Eles são chamados dessa maneira algo pomposa apenas por serem obras que passaram por um longo processo de legitimação – produzido em grande parte pela academia e passível de questionamentos a qualquer momento.
Em O Cânone Ocidental, o crítico norte-americano Harold Bloom analisa essa dinâmica existente entre os clássicos. A seu ver, obras literárias travam uma peleja freudiana em que se infuenciam pelo passado, mas também tentam constantemente romper com seus antepassados. Platão lutava para que seus escritos fossem mais relevantes que os de Homero. Crime e Castigo, de Dostoiévski, e a teoria psicanalítica de Sigmund Freud jamais seriam criados sem Shakespeare. Na ânsia de desafiar a maneira como esse mesmo autor inglês conta uma história, Beckett, Proust, Kafka e Joyce escreveram seus livros. Joyce, aliás, foi além: para escrever Ulisses, apropriou-se da narrativa da Odisseia, de Homero.
Bloom: “A tradição não é apenas um passar adiante ou um processo de transmissão benigna; (...) Poemas, contos, romances e peças nascem como uma resposta a poemas, contos, romances e peças anteriores”.
Entender esse jogo torna a leitura de clássicos algo menos fetichista. Muito mais que obras escritas por iluminados, eles são frutos da tentativa consciente ou inconsciente de escritores que almejavam adentrar na história da literatura. E só por esse esforço suas obras já merecem uma leitura.
Sempre atuais
Em 2002, o filho mais novo da aposentada Elem Seravali seguiu o caminho do mais velho e foi estudar fora. A casa em Maringá (PR) pareceu maior do que já era. Por sugestão dos filhos, ela resolveu começar a ler alguns livros da estante da sala de estar – antes, eles estavam ali mais como decoração. Desde então, Elem leu muito, e O Morro dos Ventos Uivantes, da britânica Emily Brontë, é seu livro favorito.
Suas opiniões acerca dos clássicos estão em sintonia com as ideias de dois especialistas respeitados. Elem diz: “Antes de lê-los, achava que livros antigos não serviam para os dilemas atuais. Era um engano meu.” Em O Prazer de Ler os Clássicos, o escritor Michael Dirda complementa: “As vozes verdadeiramente marcantes, uma vez ouvidas, jamais deveriam ser esquecidas”.
Elem também acha interessante ler obras mais antigas justamente pelo motivo que espanta tantas outras pessoas: sua escrita diferente, não tão usual como a vista em livros mais novos. “Essa estranheza me permite imaginar muito mais coisas”, diz. O escritor italiano Umberto Eco compara essa possibilidade de imaginar que a escrita nos oferece como um passeio por um bosque em que caminhos se bifurcam. “Todos podem traçar seu próprio caminho. Num texto narrativo, o leitor é obrigado a optar o tempo todo”, escreve o teórico e ficcionista em Seis Passeios pelos Bosques da Ficção.
Antes de largar a vida de escritor aos 22 anos e viajar até o dia de sua morte, o poeta francês Arthur Rimbaud disse algo emblemático: “O poe ta se faz vidente por um grande, imenso e racional desregramento de todos os sentidos”. Esse esforço intelectual foi experimentado também por grande parte dos escritores canônicos. Ao caminharem por bosques desconhecidos, esses autores escreveram relatos sobre a experiência. Se deixarmos de lado receios infundados, eles podem ser lidos por qualquer um de nós.
19 de set. de 2010
la lluvia
bruscamente la tarde se ha aclarado
porque ya cae la lluvia minuciosa.
cae o cayó. la lluvia es una cosa
que sin duda sucede en el pasado.
quien la oye caer ha recobrado
el tiempo en que la suerte venturosa
le reveló una flor llamada rosa
y el curioso color del colorado.
esta lluvia que ciega los cristales
alegrará en perdidos arrabales
las negras uvas de una parra en cierto
patio que ya no existe. la mojada
tarde me trae la voz, la voz deseada,
de mi padre que vuelve y que no ha muerto.
jorge luis borges
porque ya cae la lluvia minuciosa.
cae o cayó. la lluvia es una cosa
que sin duda sucede en el pasado.
quien la oye caer ha recobrado
el tiempo en que la suerte venturosa
le reveló una flor llamada rosa
y el curioso color del colorado.
esta lluvia que ciega los cristales
alegrará en perdidos arrabales
las negras uvas de una parra en cierto
patio que ya no existe. la mojada
tarde me trae la voz, la voz deseada,
de mi padre que vuelve y que no ha muerto.
jorge luis borges
O Urso bipolar
é um sol besta na savassi todo mundo passeando e comendo espetinho tomando cerveja comprando livrinho roupinha vadiando pedindo dinheiro dando entrevista por aí na savassi baianas café olha a vida essa tarde olha a mineira do norte que passa dourada o casal de sapateen e suas tatuagens e tais, o estudante barbudo com seu jornal badobraço a loira savassi perfumão brega desáine dj assina o cardápio da loja de celular é assim linda assim desse brasil tão comum tão fetiche da mercadoria mas onde não é? toda capital é de algum modo caipira, perto de toda praça mora a sua boemia, suas violências e concertinas, suas hordas de anjos em caminhos escuros. savassi , das livrarias , dos cafés e das meninas de tantos cabelos, das minhas tardes imortais, das minhas tardes imorais.
16 de set. de 2010
Quando tornar a vir a Primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma cousa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma cousa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.
Alberto Caeiro
Tati queria
amar como um pastel e só por isso, poder dizer “ah, durou coisa aí de uns quatro, cinco anos”. Queria sentir o amor que dorme ao lado, come, faz piada de banheiro. O amor menor. Dos casaizinhos que viajam para quartos pequenos de pousadas vagabundas e dividem cheiros de bosta em meio a declarações de uma vida inteira. O amor sem a arrogância do amor. Sem retirar o diamante que forma no fígado e sair escoando-se para se gabar. Olha lá o que formei em mim. O amor dos que ficam quietinhos sabendo que podemos mesmo gerar coisas lindas, todos podem, que grande coisa se todos podem. Mas ela não. Arrogante demais para não alardear o diamante ao ponto de contar primeiro aos ralos porque ninguém bom suporta o peso da vaidade. Queria o amor dos que podem corar e flanar e tomar milkshakes. O amor dos espertos, afinal. Queria mesmo? Não, nem isso e nem a camisolinha. O que ela queria? Os amigos pra boa música, bons restaurantes, bons livros e bom sexo oral.
15 de set. de 2010
14 de set. de 2010
10 de set. de 2010
"O processo de escrever é feito de erros - a maioria essenciais - de coragem e preguiça, desespero e esperança, de vegetativa atenção, de sentimento constante (não pensamento) que não conduz a nada, não conduz a nada, e de repente aquilo que se pensou que era 'nada' era o próprio assustador contato com a tessitura de viver - e esse instante de reconhecimento, esse mergulhar anônimo na tessitura anônima, esse instante de reconhecimento (igual a uma revelação) precisa ser recebido coma maior inocência, com a inocência de que se é feito".
Clarice Lispector
9 de set. de 2010
# Fail
sabe a Felicia? então, eu sou a Felicia das plantas. gosto tanto que mato encharcada ou seca. e isso sempre foi tipo uma frustração. daí que resolvi radicalizar e comprar um cactus.toda uma esperança, porque, né. se o bicho sobrevive no deserto, aqui em casa, no meu banheiro vai ser tranks.
então.o cactus jaz estropeado na pia do banheiro.muerto.e o comentário de malhação id: - mãe, cê teve a manha de matar o cactus?fora que ele chama a bancada do meu banheiro de "o laboratório de Dexter".
então.o cactus jaz estropeado na pia do banheiro.muerto.e o comentário de malhação id: - mãe, cê teve a manha de matar o cactus?fora que ele chama a bancada do meu banheiro de "o laboratório de Dexter".
8 de set. de 2010
Medialunas
Você senta para ler o jornal e come medialunas. Você está sozinho porque não sente necessidade de dividir esse momento com ninguém. Você pensa em todo mundo que faz parte da sua vida e nos que deixaram de fazer, e entende que ainda falta encontrar tantas pessoas e que você também vai se afastar por conta própria de muitas delas, porque é assim que as coisas são e não há nada de mau nisso, pelo contrário, você está contente de ter descoberto as regras do jogo e não se sente tão especial.
Fabrício Corsaletti em “Golpe de Ar”
3 de set. de 2010
Transforma-se o amador na coisa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está ligada.
Mas esta linda e pura semidéia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim como a alma minha se conforma,
Está no pensamento como idéia;
O vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está ligada.
Mas esta linda e pura semidéia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim como a alma minha se conforma,
Está no pensamento como idéia;
O vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.
Camões
2 de set. de 2010
Vou-me Embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha falsa e demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha falsa e demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Manuel Bandeira
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