27 de jul. de 2011

O que me constitui como sujeito é minha pergunta. O que busco na fala é a resposta do outro. Definimo-nos e nos formamos pelo outro, pelo olhar e pela resposta do outro.[...] Sem a mediação da palavra, que nos possibilita ser reconhecido pelo outro, somos seres isolado, incomunicáveis, irreconhecíveis. Nessa estrutura de percepção, a possibilidade de nos fazermos reconhecer é conseguir que o outro seja tocado pela nossa palavra. [...] Perco-me se outro fica com ela e não me retorna. É preciso que me devolva a palavra mediante um sentido que me faça compreender que minha palavra o tocou e ele me reconheceu. Quando lanço minha palavra é a mim mesmo que lanço. Só ela pode trazer o reconhecimento que me nutre, que me constitui. Ela diz de mim, porque ela sou eu.
Eco (1997, p. 72)

18 de jul. de 2011

Oi?

Para Freud são três as principais fontes de sofrimento: o próprio corpo, o mundo externo e o relacionamento com os outros homens. Esse último é para ele a principal fonte de sofrimento humano.
  • A tarefa de evitar o sofrimento coloca a de obter prazer em segundo plano. A felicidade “plena”, idealizada, estará então próxima da quietude – a morte.
  • Outra técnica para afastar o sofrimento reside no deslocamento da libido – em reorientar os objetivos pulsionais (sublimação). Trata-se da produção de prazer a partir das fontes do trabalho psíquico e intelectual. Exemplos desse processo: alegria do artista em criar, a do cientista em solucionar problemas ou descobrir verdades. Mesmo assim, tal estratégia não proporciona proteção completa contra o sofrimento.
  • Há outras formas de obter satisfação: o rompimento do vínculo com a realidade. A satisfação é obtida através de ilusão, vida da imaginação.
  • Outra forma de busca da felicidade é através do amor. O amor nos proporciona nossas mais intensas experiências de prazer, no entanto, é também a condição que nos achamos mais indefeso contra o sofrimento. Quando amamos e perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor nos encontramos desamparadamente infeliz.
Conclusões importantes de Freud:
  • A satisfação é sempre parcial, mantém-se sempre algo da insatisfação.
  • A insatisfação produz intenso mal-estar. A felicidade “plena” não é possível.
  • As satisfações são parciais e substitutivas.
  • “O programa de tornar-se feliz, que o princípio do prazer nos impõe, não pode ser realizado, contudo, não devemos – na verdade, não podemos – abandonar nossos esforços de aproximá-lo da consecução, de uma maneira ou de outra” (102).
  • A sabedoria popular nos aconselha a não buscar a totalidade de nossa satisfação numa só aspiração.
  • “Existem, como dissemos, muitos caminhos que podem levar à felicidade passível de ser atingida pelos homens, mas nenhum que o faça com toda segurança” (104).
A satisfação (evitar o desprazer) é sempre parcial. A satisfação plena, total é impossível. Ela só ocorreria com a morte.

INHOTIM



16 de jul. de 2011

O motoboy da cabeça amassada








Na primeira vez que ele se aproximou do meu carro no sinal fechado, achei que era mais um dos muitos mendigos e/ou fumadores de crack que infestam a região, favorecida, para eles, pela presença do Minhocão, viaduto-monstrengo que enfeia e deteriora este pedaço de São Paulo, mas que virou o maior abrigo para desvalidos que já vi na vida.
O rapaz (20 e poucos anos) veio titubeando apoiado num cabo de vassoura longo. Quando foi chegando mais perto, o olhar vazio e perdido no horizonte contrastava com as roupas dignas e asseadas e o jeito manso.
Com a voz empolada, chegando perto da janela, disse:
- Oi tio, pode me ajudar? Eu era motoboy, sofri um acidente e fiquei cego. Agora não posso trabalhar, o senhor não tem um trocado?
Foi quando eu percebi que aquele rapaz loirinho de cabelos encaracolados tinha um baita afundamento na testa. Praticamente não havia cicatriz, apenas aquela depressão côncava, como se uma bola de futebol tivesse atingido uma superfície macia. Não era macia:
- Foi um caminhão. Eu estava de capacete, sim, mas ele quebrou. Enfiei a cabeça na carroceria e agora fiquei assim. Mas tudo bem, né, a gente vai se virando. Deus ajuda e o pessoal aqui também. O senhor tem um trocado?
Eu tinha e dei, seguindo meu caminho quando o sinal abriu.
O tal cruzamento fica na rua de casa, portanto eis que estou passando por ali dias depois e lá estava ele de novo, se destacando entre os nóias (ou craqueiros) imundos e alucinados, com seu jeitinho tropicante entre os carros.
- Ei, Motoboy, vem aqui!
Chamei porque queria dar uma graninha para o cara e perguntar mais sobre sua tragédia pessoal, cuja sequela ele jamais conseguiria esconder, com aquele afundamento que vai do meio dos olhos até o couro cabeludo.
Mas ele demorou tanto para chegar, atrapalhado entre os veículos e a sarjeta, que mal consegui colocar a moeda na sua mão.
- Deus lhe pague, tio!
Na manhã seguinte, a cena se repete, mas desta vez parei bem ao lado dele.
- E aí, Motoboy, tudo em riba?
- Oi, tio, o senhor por aqui de novo...
- Ué, como você sabe que sou eu?
- Pela sua voz e pela cor do carro. Vermelho lindão né, tio?
- Mas você enxerga alguma coisa, então?
- Só o vulto, viu, tio. Depois do acidente fiquei sem enxergar nada, mas aos pouquinhos voltou alguma coisa. Agora dá para ver as cores e, bem de perto, se é homem ou se é mulher. Mas não chego muito perto, não, que a pessoa assusta, né tio? Com esse amassado na cara, já viu, né, assusta mesmo...
- Mas você vai voltar a enxerga bem de novo, Motoboy?
- Vou não... O médico disse que vai ficar assim, mesmo, só no vulto. Tudo bem, né tio, eu não reclamo, não, vou tocando a vida. Sempre aparece gente bacana pra dar uma força.
Quando ele ouve o barulho dos carros acelerando para seguir em frente, se afasta com cuidado, cutuca o chão com o cabo de vassoura e sobe ligeiro na calçada, com tempo de virar-se para o vulto vermelho que se afasta e gritar:
- Bom dia, tio, qualquer coisa 'tamos aí.
Ok, se eu precisar de alguma coisa que ele me possa dar, como aquele seu otimismo...
E está sempre por ali, mesmo, vejo-o com frequência, vira e mexe deixo na sua mão uma moeda de R$ 1 ou uma nota de R$ 2, o que o faz bem contentinho.
- Falou aí, tio do carro vermelho. Valeu!
Sigo sempre preocupado com aquela figurinha pequena, mirrada e frágil, praticamente meu vizinho Motoboy.
Preocupado?
O que mais de ruim pode acontecer com um rapaz que não vê, mal se locomove e exibe um rombo no meio da testa?
Ser atropelado por um motorista mais afoito?
Ser assaltado pelos fumadores de crack sem-noção?
Apanhar de um daqueles bebuns brigões que também circulam por ali?
E sua família, como será que trata o rapaz?
Ele tem família?
Hoje passei pelo cruzamento de novo com a ideia de dar-lhe mais um trocado e obter respostas a essas perguntas aflitivas. Mas ele não estava lá...
Para não ficar ainda mais preocupado, pensei:
- Tudo bem, amanhã ele está de volta.
Tomara, tomara...
Luiz Caversan Luiz Caversan, 55 anos, é jornalista, produtor cultural e consultor na área de comunicação corporativa. Foi repórter especial, diretor da sucursal do Rio da Folha, editor dos cadernos Cotidiano, Ilustrada e Dinheiro, entre outros. Escreve aos sábados para a Folha.com.

8 de jul. de 2011

“Pessoas sensíveis e corretas também podem desamar, ou o amor pode desviar o olhar. Se a parte física do amor acaba e fica só a amizade segurando a relação, o amor pode ter olhos para outro amor — e aí, vai calar? São as pessoas que celebram compromissos e juras; o amor, eterno enquanto dura, nem sempre assina embaixo. O amor se compromete é com a atenção, a gentileza, o bom humor, o carinho, o calor, o desejo satisfeito, a mesa essencial, a solidariedade, o capricho na relação. Tudo isso pode faltar, e então os olhos procuram outros olhares.”
Trecho da crônica A Hora de Acabar, de Ivan Angelo

7 de jul. de 2011

Rosa Guimarães

Além de conceber formas de “ver no escuro”, podemos pensar na obra de Rosa como convite a ver através de lugares obscurecidos, tidos como desprezíveis, ou mesmo recalcados pela “luz solar”. Dentre sua vasta obra, gostaria de destacar dois contos de Primeiras Estórias, que me parecem emblemáticos desse convite a alternativos modos de ver: são os contos que tratam da construção da ”grande cidade” (Brasília?), pelo olhar de uma criança, o Menino. “As margens da alegria” e “Os cimos” denunciam a associação entre conhecer e dominar, a sujeição dos seres do mundo a coisa a ser manipulada. Ocupar o interior do país, pôr abaixo a mata, construir “a grande cidade”, revela-se, de maneira indireta, um projeto de afirmação de poder. O espaço a ser ocupado, repleto de seres que o Menino embevecido descobre, é reduzido a objeto a ser conquistado; os seres, reificados.
O Menino, ao contrário dos adultos, vê cada coisa, cada ser que descobre, reconhecendo sua singularidade, sua cor, sua forma, deixando-se tocar, afetar, transformar pelo que vê. Já os adultos lidam com os seres como sendo exemplares (ou seja, um exemplar de uma categoria, e não um ser único), a árvore é uma entre outras, o peru um entre outros, o tucano, para fazer o Menino contente, deve ser capturado. O Menino, ao contrário, abre-se, sensivelmente, aos seres que vem a conhecer, numa associação entre conhecer e amar. Enquanto os adultos ao conhecer destroem, sendo a derrubada da árvore momento forte, mantendo-se sempre idênticos a si mesmos e tornando o mundo poeirento, cinzento (ao construirem o aeroporto); o Menino tem o corpo vivo, sensível, capaz de ver e sentir o corpo do outro, dos outros seres, de se relacionar sensorialmente.